quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

ENTREVISTA - Português dificil é mito

Por Radígia de Oliveira

“Qui m´imporrrta, qui m´imporrrta, o seu preconceito qui m´imporrrta”, diz o refrão da música Rapaz Caipira, de Renato Teixeira, uma brincadeira e, ao mesmo tempo, uma crítica contra quem condena o modo de falar do “interiorrr”. Assim como Renato Teixeira, o escritor e lingüista Marcos Bagno valoriza o regionalismo –como o “r” puxado de muitos brasileiros–, mas também os jeitos não-formais de se dizer as coisas. Para ele, “todas as maneiras de falar são corretas, válidas e bonitas”.

Bagno é professor do Departamento de Lingüística da Universidade de Brasília (Unb). Nesta entrevista, desfaz mitos arraigados na nossa cultura, como o de que o idioma é difícil e não sabemos falar o português “brasileiro”, adjetivo usado pelo escritor para diferenciar a língua daqui da de Portugal ou de outros países lusófonos. Na opinião de Bagno, “achar que português é aquilo que se fala em Portugal é pura bobagem”.

Como escritor, publicou pelo menos 20 livros, alguns premiados. Recebeu, por exemplo, o IV Prêmio Bienal Nestlé de Literatura pelo livro de contos A Invenção das Horas. Neste ano, lançou Nada na Língua é por Acaso, mas seu maior sucesso é o livro Preconceito Lingüístico: O que é, Como se Faz, que está na 50ª edição. Sobre o tema também escreveu Dramática de Língua Portuguesa e a novela sociolingüística A Língua de Eulália.

Professor, o Brasil fala uma mesma língua?
Marcos Bagno - Não, de jeito nenhum. Em nenhum lugar do mundo existe isso. Para começar, aqui no Brasil são faladas mais de 200 línguas diferentes. São 170 línguas indígenas, mais 30 línguas trazidas pelos imigrantes europeus e asiáticos além, é claro, do português brasileiro, que é a língua falada pela maioria da população. Mesmo o português brasileiro é uma língua que apresenta variações, diferentes maneiras de ser falada, de acordo com a região, a classe social...

Com essas variações todas, pode-se dizer que o Brasil tem dialetos?
Marcos Bagno – Dialeto é um termo técnico, usado em pesquisas sobre a língua, mas hoje em dia nós preferimos falar variedade. O português brasileiro apresenta variedades diferentes.

No livro Preconceito Lingüístico, o senhor explica que português difícil é mito. Por quê?
Marcos Bagno - Porque nenhuma língua é difícil para as pessoas que já nascem no país onde ela é falada. O problema é que, na nossa tradição escolar, na cultura, as pessoas associam português com aquela língua idealizada, escrita pelos grandes escritores, com gramática que se aprende na escola. Isso é que é difícil, mas a língua que a gente aprende com a família, com as pessoas com quem a gente vive, essa língua é facílima.

E a história de que brasileiro não sabe falar o português... Também é mito?
Marcos Bagno – (Indignado) Se o brasileiro não sabe o português, que língua o brasileiro sabe? Todas as pessoas aqui no Brasil, que têm como língua materna o português brasileiro, sabem falar muito bem essa língua.

E quem não tem estudo, não tem instrução... Também é mito dizer que esse pessoal fala errado?
Marcos Bagno – Em um país imenso como o Brasil, temos uma riqueza de comunidades diferentes, e cada uma delas fala o português brasileiro do seu modo. E como acontece em toda sociedade, a língua falada por uma determinada camada social de prestígio, com dinheiro, é escolhida, então, como a maneira bonita e certa de falar. Isso nada tem a ver com língua, mas com o prestígio que se atribui a determinadas pessoas. Todas as maneiras de falar são igualmente corretas, igualmente válidas, igualmente bonitas.

Diante disso, pode-se concluir que não é preciso saber gramática para falar e escrever bem o português?
Marcos Bagno - Aí são coisas que estão sendo ligeiramente misturadas. O ensino na gramática na escola é que precisa ser revista. Antigamente, as pessoas achavam que, primeiro, tinham que ensinar todas aquelas palavras, aquelas classificações... Oração subordinada, substantiva, objetiva direta reduzida de gerúndio... Toda aquela parafernália gramatical para, depois, aprender a ler e a escrever. Hoje nós sabemos que isso está completamente errado, que é uma distorção dos fatos. Então, o mais importante na escola hoje em dia é ler e escrever. Ler cada vez mais, escrever cada vez mais, para um dia, talvez, se for interessante, se debruçar sobre a língua, ver como ela funciona, aprender as regras gramaticais e por aí vai... Essa história de que saber português é decorar gramática é balela, não tem nenhuma fundamentação pedagógica.

Mas, afinal de contas, professor, o que é erro e o que é acerto no português? Vale tudo?
Marcos Bagno - Isso depende de valores sociais, de preconceitos sociais, de questões culturais. Do ponto de vista exclusivamente científico, não existe erro de português. Qualquer maneira de falar serve para interação entre as pessoas, comunica. Agora, como foi escolhido um modelo de língua, aí, em comparação com este modelo, todas as maneiras de falar são consideradas erradas. E como ninguém, de fato, fala ou escreve cem por cento de acordo com esse modelo, o que a gente tem na nossa cultura é só um idéia de que todo mundo fala e escreve errado. O erro é quando se compara a língua falada pelas pessoas em geral, no seu dia-a-dia, com esse modelo idealizado, muito distante de língua correta.

De que forma o professor de língua portuguesa pode apontar essas diferenças para os alunos?
Marcos Bagno – Bem, antes de mais nada, os professores precisam ter uma boa formação, conhecimento dos estudos de sociolingüística. É a sociolingüística que explica o que são as variedades lingüísticas, quais os fatores que influenciam na maneira diferente de cada comunidade falar.

O senhor recomenda algum livro sobre o assunto?
Marcos Bagno - Bons livros didáticos, que estão sendo distribuídos pelo Ministério da Educação, já abordam de maneira bem interessante essas questões.

Professor, o senhor acha que a educação melhorou nos últimos anos?
Marcos Bagno – A partir da publicação dos Parâmetros Curriculares [orientações gerais do MEC para auxiliar o trabalho do professor] começou um grande movimento de produção de material didático, de formação dos professores com conteúdo voltado para essa nova proposta de ensino, em que se prega que o mais importante é fazer a pessoa ler e escrever, o respeito pela variedade lingüística, pelas maneiras de cada pessoa falar... Então, nos últimos dez anos, tivemos um grande salto de qualidade. Agora, para ficar ainda melhor, seria necessário um investimento mais pesado na formação continuada do professor. Não adianta distribuir livro didático muito bom se o professor não tem uma formação adequada para trabalhar com eles em sala de aula. Então, eu acho que falta ainda um investimento na formação docente.

Se falta investimento na formação dos professores, o que o senhor recomenda para o professor chamado “leigo”, aquele que, na maioria das vezes, está no interior e não possui conhecimentos mínimos de sociolingüística. Como esse professor pode agir contra o preconceito?
Marcos Bagno – Ele precisa ter um espírito aberto, olhar com simpatia para as diversas maneiras de falar. Assim como a gente hoje em dia prega e defende o respeito pela pluraridade, não admite mais nenhum tipo de preconceito, de racismo, de sexismo, de discriminação por causa de valores étnicos ou porque a pessoa é deficiente física, nós também não podemos admitir que a pessoa seja discriminada, excluída e ridicularizada por causa de sua maneira de falar. A maneira de falar de uma pessoa faz parte da sua própria identidade. Somos a língua que falamos, então, quando dizemos que uma pessoa fala errado, estamos querendo dizer que ela é toda errada. Então, assim como pedimos respeito a todas as características individuais, psicológicas e culturais de uma comunidade, nós temos de incluir a linguagem. Para mim, o mais importante é isso: que a pessoa tenha essa atitude de respeito pelo que é diferente, pelo que é interessante, bonito e que pertence à identidade social e cultural daquela pessoa, daquele aluno.
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OBS. A entrevista com o lingüista Marcos Bagno foi ao ar pelo programa de rádio Escola Brasil. Para ouvir, basta entrar no site do Escola Brasil, clicar no link "pesquisa de programas", escolher a data 07/05/2008 e "enviar". O Escola Brasil trata de educação sem usar a forma tradicional e “quadradinha”, mas com leveza, bom humor, música. Conta a participação diária do Matuto, personagem que “distribui” a sabedoria do “interiorrr” sem deixar de lado o linguajar caipira, seu maior trunfo. O Escola Brasil é transmitido diariamente, às 20h (horário de Brasília), pela Rádio Nacional.
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*A Linguagem de Monteiro Lobato
No livro No País da Gramática, publicado em 1934, Monteiro Lobato já chamava a atenção para o preconceito lingüístico (que, no entanto, continua firme e forte no Brasil até hoje). Em uma conversa com as crianças do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a velha Dona Etimologia lhes diz:
- Uma língua não pára nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos.
- Que vem a ser clássicos? – perguntou a menina Narizinho.
- Os entendidos chamam clássicos aos escritores antigos, como o padre Antônio Vieira, Frei Luís de Sousa, o padre Manuel Bernardes e outros. Para os carranças, quem não escreve como eles está errado. Mas isso é curteza de vistas. Esses homens foram bons escritores no seu tempo. Se aparecessem agora seriam os primeiros a mudar, ou a adotar a língua de hoje, para serem entendidos.
*Extraído, com pequenas alterações, do livro Preconceito Lingüístico: O que é, Como se Faz, de Marcos Bagno
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Um comentário:

  1. Concordo com você, Wagner. E, olha, antes eu achava absurdo, por exemplo, alguém falar "entonces" em vez de "então". O livro Prenconceito Linguisto mudou a minha maneira de "pensar" a língua. Recomendo! Abs.

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