terça-feira, 3 de março de 2009

CRÔNICA-Menina de fé


Por Radígia de Oliveira

Anos 70, uma sexta-feira qualquer. Uma MENINA de 8 anos, magra e cabelos pretos brinca de bola com amigas da mesma idade em frente a sua casa, na periferia de Brasília.
– Joga, joga logo, joga! – grita uma das amigas com impaciência.
– Filha, entra! Você tem de se arrumar pra ir pra escola! – diz a mãe.
– Tenho de ir. Amanhã a gente joga de novo!

A MENINA mora com os avós. Os pais dela, os três irmãos mais novos, tios e primos também, por isso, há guarda-roupa até na sala e camas de campanha, comuns nos anos 70, espalhadas por toda a casa de três quartos. Uma casa pequena para acomodar tanta gente.

A MENINA toma um banho rápido e veste o uniforme da escola: saia azul marinho com pregas, camisa branca e tênis conga, uniforme típico da época. Está na 3ª série.

Na escola, animação total quando chega a professora de educação artística.

– Olá, boa tarde!
– Boa taaaaarde! – gritam as crianças em coro.
– Hoje nós vamos fazer um trabalho diferente. Quem aqui já observou o local onde mora?

A MENINA e mais algumas crianças levantam os dedinhos.

– Então, eu queria que cada um de vocês desenhasse esse local. Eu trouxe aqui a reprodução do quadro de um grande artista holandês. O nome dele é Vincent Van Gogh.
– Ele é brasileiro, professora?! – pergunta um garoto com cara de levado, e as outras crianças acham graça.
– A professora já disse que ele é holandês. Nasceu na Holanda, do outro laaado do oceano – responde a MENINA.
– Isso mesmo. E morreu faz muuitos anos. Agora, vejam este quadro – a professora mostra a reprodução da obra que retrata o quarto de dormir do artista – Ele dormia neste quartinho pequeno, e isso não impediu Van Gogh se tornasse um grande artista. E este quadro é um dos mais famosos e bonitos dele. E sabe o que eu quero?
– Nãaao! – respondem em coro.
– Quero que também cada um de vocês tente pintar o seu quarto ou a sua casa... Quem preferir pode observar tudo no fim de semana e entregar o desenho na segunda-feira...

A MENINA fica pensativa. Olha para os próprios lápis de cor. Ela só tem dois toquinhos e, para piorar, um deles é preto. De repente, observa o coleguinha do lado brincando com uma caixa de lápis de cor enoooorme. Sente inveja. São 24 lápis, todos grandes, boniiitos... – Daria pra fazer uma pintura e tanto com todas aquelas cores! – pensa a MENINA. As horas passam, toca o sinal. Fim da aula. Todos saem correndo.

A vontade de ter uma caixa de lápis coloridos e pintar o próprio quarto, como fez Van Gogh, perturba o sono da MENINA. À noite, ela vira e revira na cama sonhando com cores, lápis, cama, com o menino da escola...

Sábado, durante o café da manhã, a tia anuncia que vai ao supermercado. A MENINA agora tem um plano: furtar uma caixa de lápis de cor. Veste uma calça azul meio boca de sino e bata. Sente-se pronta para o “crime”. E vai com a tia ao supermercado.

Ao chegar, a tia fica em um corredor e a MENINA começa a circular. Passa pelo vestuário, seção de limpeza, açougue, perfumaria e chega aonde deseja: a papelaria. Ali, sim, há várias caixas de lápis de cor. Ela fixa os olhos cheios de desejos em uma delas. Quer ter coragem para pegar a caixa, mas não consegue. Volta a circular pelo supermercado. Novamente, passa pela seção de limpeza, vestuário, açougue, perfumaria e papelaria. Fixa os olhos, observa a caixa, mas ainda não consegue ter coragem. Volta a circular... Enquanto isso, a tia, que já havia comprado o que precisava, está com o carrinho na fila do caixa. Sem se importar com o tempo, a MENINA circula de novo pelas seções. Mais uma vez, chega ao local do “crime”.

Agora sim, ela pega a caixa e, sem saber exatamente onde esconder, enfia rapidamente dentro da calça comprida, na parte da frente. A calça ganha um volume em forma de retângulo, e a MENINA, assustada, acredita que todos a observam, que sabem o que está fazendo. Sente-se a pior criminosa do mundo. O tormento continua porque ela não tem coragem de sair do supermercado com a caixa furtada. Então, volta a circular... a circular... começa a suar frio... quase desmaia.... caminha tremendo e, no auge do terror toma a decisão mais difícil de sua pequena vida: devolver a caixa para o local onde estava. Ela circula, circula... e com uma rapidez impressionante, tira a caixa da calça e devolve ao local de onde havia furtado.

– Vou chamar a polícia pra te pegar, sua ladrazinha! – grita atrás dela uma voz grossa masculina que deixa a MENINA em estado de choque. É o segurança do supermercado.

A MENINA sai correndo como louca. Passa pela tia, que já estava procurando por ela do lado de fora do supermercado, e nem dá bola... A tia chama por ela, mas a MENINA continua a correria. No caminho, vê um carro da polícia. Com a ingenuidade típica de uma criança, acha que a polícia agora está atrás dela. E enrubesce, treme mais, corre tropeçando nas pedras... levantando poeira e, finalmente, chega em casa.

– Sozinha? Cadê a sua tia? – questiona a avó.
– Tá vindo aí atrás, vó!

A avó, que acabara de preparar um cuscuz, chama a MENINA para lanchar. Mas ela agradece, não quer nada. Vai direto para o quarto, encosta a porta e, nervosa, ajoelha-se ao chão. Com as mãos levantadas para cima, pede mil perdões a Deus por ter pecado... De repente, é surpreendida pela avó, que abre a porta... Ela percebe que a MENINA está desesperada, quase chorando.

– O que aconteceu?
– Nada, vó, eu só estou rezando pros meus pais ganharem uma casa da *Shis.

É domingo. Os pais da MENINA mais uma vez procuram saber se foram contemplados com a sonhada casa. De repente, o nome e sobrenome do pai da garota estão ali, nos classificados do jornal. Susto e alegria. Sim, é verdade, finalmente a família da MENINA vai ter casa própria. Mais do que depressa, a avó conta pra todos que flagrara a MENINA rezando de joelhos para os pais ganharem uma casa. Com emoção, acrescenta que todos deveriam agradecer porque aquilo era fruto da fé da garota.

- Minha filha me deu uma casa! – grita o pai.
- Deus ouviu os pedidos dela – diz a mãe.
- Deve ser porque é criança. Tem mais fé, né?! – comenta a tia.

A MENINA é abraçada, beijada e carregada nos braços pelas ruas poeirentas da capital federal.
Fim

Copyright © 2009 by Radígia de Oliveira
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*Shis era o Sistema de Habitação de Interesse Social, do governo do Distrito Federal. Muitas periferias de Brasília foram habitadas assim: famílias faziam inscrições na Shis e recebiam as casas. O dinheiro era devolvido ao governo em prestações mensais que costumavam durar 30 anos. As famílias contempladas recebiam a notícia pelos jornais da cidade que, no domingo, publicavam listas.

A primeira imagem deste texto:reprodução da obra O Quarto de Dormir,de Van Gogh
A segunda imagem:by jdurham, disponível em
http://www.morguefile.com/archive/display/233980
A música deste texto:"Quem sabe eu ainda sou uma garotinha...", ops, na verdade o nome é Malandragem, de Cazuza e Frejat, com Cássia Eller.

2 comentários:

  1. radi, que bacana q tá esse teu cantinho virtual aqui. amei. vc viu q eu linkei seu blog no mulher q maravilha? vou ficar por aqui mais 1 pouco, lendo o q vc escreveu ultimamente. adoro. smack. : **********

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  2. Oi, Josi! Fiz questão de linkar o seu blog desde que abri este espaço, viu? Significa q acompanho tudo-tudo o q vc publica. Só falta comentar, né? Em breve... Um beijo.

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